Miguel Brito e Abreu
Testemunho de doente
30-12-2022
Aos poucos dias de me ser diagnosticado um mieloma múltiplo e antes ainda de iniciar tratamentos, dei por mim com espasmos e dores imobilizastes numa cama do hospital, com morfina na veia e a comer fortimel que tinha de me ser levado à boca. Nem eu nem as pessoas que eu conhecia tínhamos algum vez ouvido falar em Mieloma Múltiplo.
Os médicos e as enfermeiras tentavam tranquilizar-me, dizendo que havia tratamentos. Eu achava que tinha algo fulminante, que não me estavam a dizer toda a verdade e que a minha vida não ia durar muito. Lembro-me que chorava ao pensar que não iria ver os meus filhos crescer.
O meu receio era também motivado pelo que lera no Dr. Google, cuja pesquisa aleatória me dizia que mieloma era uma variante rara de cancro do sangue, remetendo para uma esperança média de vida de 3 anos. Ao escrever este texto fui novamente fazer essa pesquisa e as sugestões que surgem são agora menos assustadoras. A “life expectancy” deixou de ser a primeira sugestão quando se escreve “Multiple Myeloma” no motor de pesquisa e os números que agora aparecem são menos assustadores, apesar de seguramente errados.
Este primeiro internamento foi em maio de 2019. Passaram 3 anos e meio e não só ainda cá estou como me encontro em resposta completa, sem estar a fazer qualquer tratamento e a sentir-me verdadeiramente melhor do que antes de ter a doença. Claro que nem tudo são rosas, e desde logo não me importava de reaver uns centímetros que perdi e de devolver à proveniência uma curva que ganhei nas costas, fruto das lesões na coluna provocadas pela doença.
Ao fim de 3 semanas na cama do Hospital, larguei a morfina, fiz o “levante” e fui para casa, cheio de medo de voltar a ficar imobilizado sem ter à minha volta todo aquele pessoal do Hospital. Depois de regressar a casa, recomecei progressivamente a andar. Ao princípio, muito devagarinho e com um colete para amparar as costas. Depois, fui progressivamente acelerando o passo e largando o colete de vez em quando. Também recomecei a nadar.
Ao cabo de alguns meses, e 3 internamentos, fiz um autotransplante. O que mais recordo dessa altura foi a Gripe A que apanhei pouco depois de sair da unidade de transplante. Um valente susto em casa, com as defesas em baixo e com a febre a subir aos 40 graus, cheio de tremores e convulsões.
Por essa altura, chegou o COVID. À nossa volta começavam a surgir casos e decidimos isolar-nos (mulher, filhos e Eu). Tivemos a sorte de um tio nos emprestar a sua casa de férias na aldeia da Bordeira, e ali ficámos durante os 4 meses do primeiro confinamento.
Foi uma maravilha! Queríamos reduzir ao máximo os contactos e por isso comíamos o que se arranjava ali à volta que era sobretudo fruta, legumes e o que a carrinha diária do peixe trazia. Os meus filhos ainda hoje se queixam das refeições desses tempos. Já eu, mudei a minha dieta e tenho a clara sensação que isso me faz sentir melhor.
Na Bordeira, comecei a fazer longos passeios pelos trilhos da costa vicentina num regenerador período de contacto com a natureza. Ao início tinha de usar uma bengala ou cajado porque os trilhos eram acidentados, mas progressivamente fui abandonando esses apêndices. Ainda tinha muito medo de cair (continuo a ter), mas quase todos os dias tentava estabelecer uma meta a superar: mais distância, mais velocidade, terreno mais acidentado, um mergulho no mar frio,, etc.
Quando saí da Bordeira, sentia-me genuinamente bem e iniciei um processo de retoma da vida normal e da atividade física.
Na parte desportiva, comecei com reabilitação, depois caminhadas, pilates, natação, bicicleta, vela e agora também surf. Eram atividades que já fazia com maior ou menor frequência antes de ficar doente, mas que retomei de forma mais disciplinada e sistematizada. Em todas elas, consigo hoje superar o que fazia antes da doença. Por indicação médica, as atividades com impacto estavam-me vedadas, mas a recuperação óssea já me permite hoje também retomar as corridas. Só não o fiz ainda por inércia.
Profissionalmente, há cerca de um ano retomei a minha atividade com normalidade e de forma presencial. Sinto que as minhas capacidades estão diferentes, mas não consigo atribuir à doença ou aos tratamentos a responsabilidade por isso. Sinto que é sobretudo o resultado de uma nova forma, porventura mais distanciada e menos disponível, de encarar o trabalho. Acredito, porém, que a eventual menor “competitividade” é compensada por mais sabedoria, e o referido distanciamento, que nem sempre é um defeito em contexto profissional.
Fiz há um mês as primeiras análises após os tratamentos. Foi a única vez em três anos e meio que o relatório não tinha valores a negrito, ora da doença ou da imunossupressão.
Ao longo de todo este processo, descobri que ter objetivos e projetos, independentemente da sua ambição, ajudou-me muito a lidar emocionalmente com a doença e a proteger-me de pensamentos que desejaríamos que não nos visitassem com tanta frequência. Em suma, as mini-metas que ajudam a combater a melancolia – como eufemisticamente dizem os psicólogos – em que inevitavelmente se cai ao sabemos ter uma doença que ainda é rotulada como incurável e potencialmente fatal.
Quando falo em objetivos ou projetos, no meu caso podiam ser coisas simples como tentar sair de casa todos os dias, escrever uma página por dia, aumentar a distância da caminhada de dia para dia ou comer um legume diferente de cada dia, dando-me ao trabalho de o ir escolher e comprar. Também tive algumas derrotas, como nos objetivos de leitura, no desejo de ir nadar regularmente no mar ou a concluir cursos online e que me inscrevi.
O que estou convencido é que as mini-metas e os objetivos que fui estabelecendo - alcançando ou não - foram muito importantes no processo de superação ao estimularem-me a seguir em frente.. Ao ponto de poder dizer que me sinto melhor hoje do que me sentia antes de ter a doença
Ajudou também uma certa mudança de hábitos. Sou agora mais disciplinado na alimentação e na atividade física, mas também mais seletivo e livre nas escolhas que faço no dia a dia. Por paradoxal que possam parecer, sou hoje simultaneamente mais espontâneo e racional.
Ainda que não haja nada que a pessoa possa fazer para evitar que o Mieloma volte, acredito que há sempre margem para nos melhorarmos física ou mentalmente, e isso é algo que podemos fazer para estar mais preparados e lidarmos melhor com o mieloma se e quando o tal regresso do amigo indesejado acontecer.
Neste momento, estou a preparar o meu próximo projeto, que não é pouca coisa. Fazer uma passagem oceânica em solitário à vela, ligando Lisboa à Madeira. Se tudo correr bem e tiver gostado, talvez continue mais um pouco. O vídeo que acompanha esta mensagem é uma compilação feita pelo meu filho de imagens minhas a treinar a navegação em solitário. Este ano já fiz dois troços de 200 milhas Foram cerca de 30 horas num caso, mais de 40 no outro – para que se perceba a diferença entre o bom tempo e o mau tempo, o que não deixa de ser uma analogia engraçada para o que referia há pouco sobre superar obstáculos nos bons momentos e superar obstáculos nos maus momentos. Para chegar à Madeira, terei de fazer 450 milhas, estimando que poderei demorar 3 a 4 dias, dependendo da meteorologia, a partida favorável no verão.
Considero o meu caso um sucesso que não teria sido possível sem o apoio de família e dos amigos ou a sorte de ter sido acompanhado e orientado por excelentes profissionais do Hospital de Santa Maria. Isto soa a cliché, mas é a mais pura das verdades e traduz o que sinto de forma mais genuína.
Finalmente, este testemunho não ficaria completo se não dissesse também algo sobre os tratamentos que fiz, e pelos quais estou muito agradecido aos médicos enfermeiros que me acompanharam, ao SNS e – por que não - aos cientistas que os descobriram.
Nós respondemos.